Casos Vioxx e antidepressivos para jovens expõem dependência do órgão regulador dos EUA diante da indústria

23/08/2011 19:55

Casos Vioxx e antidepressivos para jovens expõem dependência do órgão regulador dos EUA diante da indústria
Sem credibilidade, FDA pode ter mudança
Marcelo Leite
Colunista da Folha

27/12/2004

 

Nem os cientistas da FDA (Food and Drug Administration, agência de fármacos e alimentos dos EUA) acreditam totalmente nela. Dois terços de 400 pesquisadores ouvidos numa pesquisa disseram confiar na sua capacidade de detectar problemas de segurança em medicamentos à venda - mas não inteiramente. E mais de um terço tem dúvidas sobre o processo de aprovação de drogas novas.

O prestígio da agência anda tão baixo que a pesquisa só veio a público sob fórceps. Feita por iniciativa de um corregedor do Departamento de Serviços de Saúde e Humanos, só surgiu na imprensa depois que as organizações Funcionários Públicos pela Responsabilidade Ambiental e União de Cientistas Responsáveis acionaram o departamento, com base na Lei de Liberdade de Informação.

Na raiz da crise estão dois escândalos que tornarão 2004 um ano inesquecível para a FDA: os casos dos antidepressivos para jovens e do Vioxx.

No primeiro, foi acusada de demorar a alertar o público para o risco elevado de suicídio em jovens e crianças medicados como antidepressivos da classe do Prozac. No outro, de inação diante de indicações de aumento de problemas cardíacos em pacientes medicados com o antiinflamatório Vioxx (rofecoxibe), que só saiu de circulação por iniciativa do fabricante (Merck, nos EUA, e Merck Sharp & Dohme, no Brasil).

Esses episódios confirmam suspeitas anteriores de que transformações estruturais sofridas pela agência na última década podem estar na origem de problemas ainda maiores. Já se discute se o órgão não necessita de uma reforma mais profunda, com a criação de um centro só para monitorar a segurança de remédios depois de aprovados para comercialização.

O míssil mais devastador contra a FDA foi disparado no Senado dos EUA por um cientista com 20 anos de casa. David Graham, revisor de segurança de remédios na agência, disse em testemunho em novembro que ela está "quebrada". Ao jornal "The New York Times", afirmou que a FDA "estava enfatizando demais as aprovações, e não a segurança".

Ele diz duvidar da capacidade da agência de evitar novos casos como o Vioxx. E calcula em 55 mil as vítimas fatais de ataques cardíacos que resultaram da demora em reconhecer publicamente os riscos do antiinflamatório - estimativa que a FDA, diz o jornal, qualifica como "lixo científico".

Ocorre que Graham, antes de 30 de setembro, quando a Merck retirou o Vioxx do mercado, tinha encaminhado para publicação no periódico médico "The Lancet" um artigo relatando pesquisa que ligava o rofecoxibe a ataques cardíacos. O artigo não saiu, segundo o autor, por pressão de seus superiores dentro da FDA.

Segundo mensagens de correio eletrônico reproduzidas pelo jornal "USA Today" em novembro, a pressão partira de Steven Galson, então dirigindo o Centro de Avaliação e Pesquisa de Drogas da FDA. Galson teria procurado o editor da "Lancet" para falar sobre a possibilidade de Graham ter manipulado dados do estudo.

"A FDA está engajada num ato de censura científica", disse Graham à revista científica "Nature", que traz na edição do último dia 2 uma relato do caso. A agência se limita a dizer que seu pesquisador não seguiu as normas internas para encaminhamento desse tipo de trabalho para publicação.

Herança de Clinton

A coisa estava ficando tão feia para a FDA que a Casa Branca decidiu sair em sua defesa. No dia 19 passado, o chefe de gabinete de George W. Bush, Andrew Card, declarou na emissora ABC: "Eu apóio a FDA. Eles fazem um trabalho espetacular".

"Precisamos de uma FDA que tome conta da saúde dos pacientes, e não só da saúde da indústria farmacêutica", retrucou num comunicado o senador democrata Edward Kennedy. Com ele concorda o republicano Charles Grassley, que propôs a criação do centro independente para avaliar a segurança de remédios aprovados pela agência.

A FDA tem hoje um orçamento anual de US$ 1,8 bilhão e 10,8 mil funcionários. Uma parte crescente desses recursos é drenada para o laborioso processo de teste e licenciamento de novos remédios. Novos, em termos. A maior parte dos pedidos de licença são para novas formulações, dosagens ou indicações dos mesmos princípios ativos, expediente para estender o prazo de exclusividade na comercialização (cada autorização da FDA é dada apenas para usos específicos).

Segundo levantamento de Marcia Angell, durante duas décadas editora-chefe da conceituada revista "New England Journal of Medicine", 415 remédios foram aprovados de 1998 a 2002, dos quais apenas 133 (32%) eram princípios ativos inovadores. Desses 133, só 58 receberam prioridade para tramitação na agência, condição reservada a medicamentos com grande potencial.

Os dados constam no livro "The Truth about the Drug Companies" (A Verdade sobre as Empresas Farmacêuticas), que Angell lançou em agosto, antes da tormenta Vioxx. Outro livro a prever a tempestade foi "The $800 Million Pill" (A Pílula de 800 Milhões de Dólares), de Merrill Goozner, que chegara às livrarias em abril.

Angell, Goozner e outros críticos da FDA acreditam que a distorção das funções da FDA começou em 1992, no governo democrata de Bill Clinton. Pressões políticas da indústria por desregulamentação surtiram efeito sobre o Congresso e a Casa Branca.

Entre outras reformas, a agência passou a ser remunerada pelos licenciamentos. Isso lhe garante uma receita anual de US$ 200 milhões (dado de 2003), mas a FDA assumiu o compromisso de gastar um montante fixo no exame de novos remédios. Como as verbas aprovadas no Congresso vêm caindo, o licenciamento de medicamentos passou a consumir 79% do orçamento da agência, segundo o "New York Times".

Isso cria incentivo para acelerar o processo de revisão e reduzir exigências, além de dependência e subordinação da agência reguladora à indústria, grande financiadora dos testes clínicos necessários para licenciar um novo remédio. Esses testes chegam a envolver milhares de pessoas e são encomendados pela indústria a empresas especializadas (o controle lhe permite, por exemplo, ocultar resultados desfavoráveis). Depois de aprovado, a FDA pode recomendar estudos de acompanhamento da segurança, chamados de fase 4, mas não tem poder para obrigar a empresa a realizá-los.

 
 

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